2/21/2008

Coisas do Pedro - Perspectiva Linear 2PF

Por mais que se quisesse lembrar, Pedro não conseguia ter uma imagem clara do sonho dessa noite. Foi por isso que, depois do pequeno almoço com as panquecas especiais que só a avó sabia fazer – a que ele dava o nome de “Panquecas Relâmpago” – subiu ao quarto, retirou da estante a capa que usava em Educação Visual, pegou na bolsa que estava na gaveta da mesa e saiu de casa para se sentar numa das cadeiras de pinho que rodeavam a enorme mesa onde almoçavam nos domingos quentes de Verão, sob a frondosa ramada de uvas americanas, junto à porta de entrada da fresca loja e da casota do Nico — que de momento não estava.
Puxou pela régua que espreitava da capa, de onde também retirou um bloco de folhas A3, do qual destacou uma. Do estojo procurou e tirou para fora o lápis H, a borracha e o aguça.
Afiou o lápis sobre o canteiro de begónias que ladeava um dos lados do pátio de entrada da loja — não sem antes dar uma olhadela para o horta à procura de sinais da avó — e alinhou-os, lápis e aguça, junto à régua e à folha de papel, já dispostos sobre o tampo escurecido da mesa.
De seguida, recostou-se, forçando a cadeira a tombar para trás, usando como eixo os topos das pernas posteriores da cadeira – novamente olhou para a horta à procura de sinais da avó – até que a travessa das costas da cadeira encostasse à parede de granito da loja.
“E agora o que faço?” pensou a olhar para panóplia de instrumentos de desenho perfeitamente organizados sobre a mesa.
“Por onde começo a desenhar?”
“Talvez se fechar os olhos...”
Elevou os pés, pousou-os sobre a mesa, mesmo ao lado da folha A3, cruzou as mãos sobre a barriga e fechou os olhos.
De início quase não viu nada, apenas umas tremelicantes manchas prateadas sobre um fundo escuro, que pouco a pouco se foram desvanecendo, até ficarem imperceptíveis sobre o fundo negro. Concentrou-se.
“O que tinha visto no sonho?”
A sua mente organizou-se num rectângulo.
“Uma janela, era isso! Tudo se passava numa janela, uma enorme janela com grossos caixilhos de madeira e com um só vidro.”
Num ápice e quase sem dar por isso, já tinha tirado os pés da mesa e desencostado a cadeira da parede. Frenético, com medo que aquela imagem se desvanecesse, pegou na régua e desenhou, aproximadamente no meio da folha, um rectângulo com vinte e um centímetros de base e catorze vírgula oitenta e cinco centímetros de altura.
Ainda se lembrava das dimensões do A5, pensou com satisfação, enquanto desenhava um novo rectângulo, cujos lados distavam – para o exterior - um centímetro dos lados do primeiro.
“O. K. Já tenho a janela.”
Tinha começado o desenho mas sabia que faltava o mais importante.
“- O que é que eu via desta janela?”
Pousou o lápis e a régua, apoiou a cara nas mãos e cerrou novamente os olhos. Aos poucos na sua cabeça começaram a surgir pormenores do que tinha visto através daquela janela, primeiro pormenores isolados e sem significado, que depois se encadearam como uma imagem que se vai adaptando e modificando até se tornar totalmente perceptível e cristalina.
No momento seguinte já sabia o que tinha visto no seu sonho. Saltou como uma mola para a folha de desenho, onde recomeçou a desenhar freneticamente.
“Já sei o que vi e como o desenhar!” exclamou satisfeito por ter prestado atenção às aulas de Visual do ano anterior. Diversas linhas, inicialmente sem sentido para quem ignorasse o que ele estava a fazer, começaram aos poucos a produzir formas reconhecíveis.
Primeiro desenhou uma linha horizontal que cortava a janela já desenhada, mais ou menos a meio, e que se estendia de um lado ao outro da folha. Junto ao extremo esquerdo dessa linha, escreveu LH. No exterior da janela e sobre a linha horizontal, a meia distância entre cada lado da janela e o limite da folha, marcou dois pequenos traços verticais: junto a um escreveu PF1 e junto ao outro PF2.
Olhou para o resultado e acenou com a cabeça: sabia que estava no bom caminho e estava satisfeito. Continuou, agora com mais convicção e rapidez de gestos. Traçou diversas linhas, umas verticais, outras oblíquas, que partiam dos pontos PF 1 e PF2, ora grandes ora pequenas. De vez em quando parava para afiar o lápis — acompanhado por olhares furtivos à procura de sinais da avó - ou para olhar para o desenho.
Por fim parou mais longamente. Ali estava a representação do seu sonho.
Através ou talvez dentro da janela (o Pedro ainda não sabia bem), era visível à esquerda um paralelepípedo, quase um cubo, com quatro aberturas, duas em cada uma das faces. Na face esquerda, as aberturas rectangulares - que observadas com mais atenção representavam janelas com quatro vidros cada – estavam alinhadas verticalmente, sem se tocarem entre si, nem tocarem qualquer das arestas da face do sólido.
Já as aberturas da face direita do paralelepípedo apresentavam uma configuração diferente: a abertura inferior era baixa, com uma linha vertical a dividi-la ao meio e que quase tocava as arestas daquela face do cubo, enquanto a abertura superior, para além de ser mais alta que qualquer das outras, encostava um dos lados à aresta superior dessa face.
Vencida a estranheza inicial, Pedro apercebeu-se do que representava o paralelepípedo: uma casa isolada virada ao contrário, uma casa de pernas para o ar, em que uma das aberturas representava uma porta.
“O que é que isto quererá dizer?”, pensou o Pedro franzindo o sobrolho.
A representação contemplava ainda um grande buraco horizontal e rectangular - como se fosse uma piscina vazia de água, sendo visível uma parte do fundo - situada na parte direita da grande janela onde toda cena se desenrolava. A piscina apresentava dois túneis rectangulares — cada um em cada uma das paredes visíveis – dos quais apenas se vislumbrava o início.
Completava o desenho uma pirâmide regular de base rectangular que se encontrava no meio da “praça” formada pela casa e pela piscina. Pedro não se tinha apercebido da sua existência - apesar de a ter desenhado não achou isso estranho - porque a pirâmide era transparente e tudo o que estava por trás dela era visível.
“Uma pessoa sonha cada coisa”, pensou o Pedro, sorrindo e abanando a cabeça.
Só lhe faltava um pouco de cor para completar a representação do seu sonho.
De dentro da bolsa retirou vários lápis. Estava a afiá-los — sempre para o canteiro das begónias e sempre com olhares furtivos (já sabemos para onde e porquê…) quando sentiu as suas mãos húmidas e ásperas. Olhou para as mãos. Estava tudo normal. Pegou noutro lápis e de imediato sentiu novamente humidade e aspereza. Ficou inquieto. Não via nada de anormal quando olhava e tocava nas mãos, mas essa sensação voltava logo que voltava a pegar nos lápis para os afiar. No instante seguinte a humidade e aspereza atacou-lhe a bochecha, a boca e o nariz. Instantaneamente largou o lápis e o aguça e levou as mãos à cara... mas não conseguiu tocar-lhe! Qualquer coisa impenetrável peluda interpunha-se entre ela e as suas mãos.
Em desespero continuou a forçar a passagem. De nada lhe valia essa insistência. Continuava a não conseguir passar com as mãos por entre o inexplicável obstáculo e a afastar aquela sensação estranha mas também peculiarmente reconhecível.
Tanto esforço … obrigou-o a abrir os olhos!
“Nico!”, exclamou com espanto, sobressalto e alívio. Nico retribuiu com um sonoro e afável latido.
Pedro afagou a enorme cabeça café com leite do cão da avó enquanto retirava os pés de cimo da mesa e desencostava as costas da cadeira da parede. Olhou para a folha de papel e foi sem surpresa que viu que ela estava em branco.
“Voltei a adormecer”, exclamou com um sorriso.
“Não fiz o desenho, mas pelo menos já me lembro do sonho”, contentou-se.
Olhou para o canteiro das begónias e viu as aparas da sua primeira e única afiadela. Envergonhado, pegou nelas e pulverizou-as entre os dedos. Da próxima vez traria uma caixinha para as depositar.
“Obrigado por me teres acordado no momento exacto”, sussurrou na orelha do Nico enquanto o abraçava ternamente, com o cão a retribuir o seu afecto com vigorosos abanões da cauda.
Sabia que agora já não podia desenhar: o Nico não lho permitiria, queria brincadeira. Arrumou os materiais de desenho dentro da capa e do estojo e correu em direcção à cancela do quintal, com o Nico aos pulos frenéticos à sua frente e de um lado para o outro.
“Agora é tempo de brincar. Logo à noite, antes de deitar será o tempo de desenhar”, ainda pensou enquanto fechava a cancela e atirava o mais longe que podia um galho que tinha apanhado do chão, imediatamente perseguido com vibrante satisfação pelo Nico.

1 comentário:

José Alves disse...

Representa num desenho a descrição do sonho do Pedro, utilizando as técnicas, os materiais e as dimensões que ele usou. Pinta a perspectiva com lápis de cor, tirando partido da representação de diferentes texturas, cada uma para um material e usando tons quentes para as construções e tons frios para os restantes elementos (terra e céu).